Os juros moratórios e a correção monetária pelos índices da poupança, segundo a Lei 11.960/2009 e a
Com o advento da Lei nº 11.960/2009 e posteriormente da Emenda Constitucional nº 62/2009, surgiu no âmbito dos Tribunais um grande debate acerca da forma de cálculo dos juros moratórios e da correção monetária sobre os valores devidos em atraso pela Fazenda Pública. Muitos juristas entendem que o cálculo deve utilizar a TR como índice de correção monetária e o percentual de 0,5% como índice de juros de mora; outros, entendem que ambos os índices devem ser aplicados conjuntamente, sem diferenciação. Surge, nesse entremeio, ainda uma outra questão, qual seja a possibilidade ou não de capitalização dos juros moratórios, nos exatos termos da poupança. Este trabalho busca elucidar um pouco esses questionamentos.
A Lei nº 11.960/2009 assim dispôs em seu artigo 5º:
Art. 5º. O art. 1º-F da Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1997, introduzido pelo art. 4º da Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 1º-F. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança. (NR)"
Inicialmente, vale esclarecer quais são os "índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança". Eles estão previstos na Lei 8.177/1991, artigo 12:
Art. 12. Em cada período de rendimento, os depósitos de poupança serão remunerados:
I - como remuneração básica, por taxa correspondente à acumulação das TRD, no período transcorrido entre o dia do último crédito de rendimento, inclusive, e o dia do crédito de rendimento, exclusive;
II - como remuneração adicional, por juros de: (Redação dada pela Lei n º 12.703, de 2012)
a) 0,5% (cinco décimos por cento) ao mês, enquanto a meta da taxa Selic ao ano, definida pelo Banco Central do Brasil, for superior a 8,5% (oito inteiros e cinco décimos por cento); ou
b) 70% (setenta por cento) da meta da taxa Selic ao ano, definida pelo Banco Central do Brasil, mensalizada, vigente na data de início do período de rendimento, nos demais casos.
Nesse ponto, vale alguns esclarecimentos.
A Lei 8.177, de 01/03/1991, estabeleceu regras para a desindexação da economia, em uma época em que o país ainda lutava contra a superinflação. Em um contexto de desindexação, os governos buscam retirar de todos os preços públicos e privados a possibilidade de reajustamentos automáticos com base na inflação passada (que pode ser calculadas de diversas formas, como o fazem institutos como o IBGE e a FGV). Isso porque um tal procedimento não só eterniza a inflação passada, ao incluí-la no preço para o futuro sem permitir que ela possa ser absorvida naturalmente pela economia, como também (o que é pior) multiplica a inflação futura, pois o aumento no preço, que juridicamente é tratado apenas como uma "correção" do valor, não é sentido como tal pela economia, para a qual ele se apresenta como um aumento de preço como qualquer outro, de forma que todos os agentes econômicos tendem a aumentar também seus preços para compensar essa elevação oriunda da "correção" - é a inflação que se multiplica devido a uma suposta "correção". É o que ocorre atualmente com os preços públicos de luz, telefone, dentre outros, que possuem contratos de concessão indexados a determinados índices inflacionários, como o IGP-M, e que são elevados anualmente, forçando, em face da sua importância, o aumento de preços em cascata em toda economia, gerando uma inflação muito maior do que a que ocorreria caso não existisse essa indexação.
Em face disso, a Lei 8.177/91, visando evitar a bola de neve inflacionária resultante da indexação das operações financeiras e contratos a índices de correção monetária, criou a Taxa Referencial - TR. Índice a ser calculado pelo Banco Central do Brasil - BCB, a partir de metodologia aprovada pelo Conselho Monetário Nacional - CNM, inicialmente era obtida a partir da remuneração mensal média de impostos, determinados depósitos e títulos públicos; atualmente, em face da vigente Resolução do CNM nº 3.354/2006, é calculada a partir da remuneração mensal média dos CDB/RDB emitidos a taxas de mercado prefixadas, com prazo de 30 a 35 dias, pelas 30 maiores instituição financeiras do país (a média dos juros do CDB/RDB resulta inicialmente na Taxa Básica Financeira - TBF, sobre a qual é aplicado um Redutor, resultando então na TR).
Como se vê, a TR é uma taxa de juros, que inclui correção monetária e juros simples, sem diferenciar um do outro. É um caso semelhante ao da taxa SELIC. Vale dizer, o fato de ser calculada a partir da aplicação de um Redutor sobre o índice TBF, que é a taxa média de juros remuneratórios aplicados no mercado brasileiro para CDB/RDB, não desnatura sua condição de taxa de juros, até porque o Redutor é um fator nominal que varia sem qualquer relação com a inflação (o fato de reduzir eventualmente a TR a zero está relacionado à redução geral na taxa de juros do país, e não à inflação zero, que é apenas circunstancial nesse ponto, não fazendo parte do cálculo).
Portanto, a TR é uma taxa relacionada à remuneração do capital por um prazo determinado. Não se trata de um índice de correção monetária, mas uma taxa de juros, como diversas outras do mercado, que inclui correção e remuneração do capital.
Não é à toa que a Lei 8.177/91 estabelece que (I) a remuneração básica da poupança é a TR diária acumulada no mês, somada a (II) um "adicional" de juros de meio por cento ao mês. Como se vê, a própria lei deixa claro que a TR é a taxa de juros básica da poupança (pós-fixada), à qual se soma uma taxa adicional de juros pré-fixados de 0,5%, ou de 70% da meta da taxa Selic anual definida pelo Banco Central do Brasil, sempre que essa meta anual fique em patamar igual ou inferior a 8,5%.
Estabelecido, portanto, que a TR é uma taxa média de juros verificada pelo BACEN, tal qual a taxa SELIC, e não um índice de correção monetária, passo à análise da forma de aplicação da TR para fins de liquidação dos débitos da Fazenda Pública.
Como já referido, o artigo 1º-F da Lei 9.494/97 (na redação da Lei nº 11.960/2009) estabelece que, em se tratando de condenação imposta à Fazenda, "para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança".
Considerando que a TR é uma taxa de juros como qualquer outra do mercado, tem-se que o sentido da norma acima é inequívoco: assim como se procede com a SELIC na atualização do débitos judiciais, para atualização dos valores devidos pela Fazenda deve ser aplicada a TR mensal, mais os juros pré-fixados (de 0,5% ao mês, ou 70% da meta da taxa Selic anual mensalizada), acumulados em todo o período de atualização, tantos quantos forem os meses entre a data da parcela devida e data do cálculo para pagamento. E essa operação (incidência, sobre o valor original, da TR mensal + taxa pré-fixada acumuladas) é feita uma única vez.
Vale dizer, a fim de evitar o anatocismo, a cumulação das taxas mensais do período em questão deve ser feita pela simples adição das taxas mês a mês, o que não se confunde com incidência da taxa num determinado período e a agregação do resultado ao capital para a nova incidência no período seguinte, o que geraria a capitalização dos juros que é vedada.
Nesse sentido a jurisprudência desta Corte, tratando sobre o caso análogo da aplicação da SELIC para atualização dos débitos:
"EXECUÇÃO DE SENTENÇA. CAPITALIZAÇÃO DA SELIC. SOMATÓRIO DOS PERCENTUAIS MENSAIS. LIQUIDAÇÃO POR ARTIGOS.
1. A forma correta de cumulação da SELIC é mediante o somatório dos percentuais mensais, sendo que a multiplicação dessas taxas constitui caso de anatocismo, vedado em lei.
2. A espécie de liquidação de sentença por artigos presta-se, exclusivamente, para determinar o valor da condenação, quando houver a necessidade de se alegar ou provar foto novo."
(AC nº 2000.70.00.030803-3/PR, Rel. Des. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, DJ 05.11.2003, p. 791)
"TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. TAXA SELIC. APLICAÇÃO.
Considerando a natureza híbrida da Taxa SELIC que engloba correção monetária e juros, os percentuais auferidos mensalmente devem ser somados, pois, do contrário, sofrem capitalização, o que é vedado pelo ordenamento jurídico nacional."
(AC nº 2000.71.00.016149-8/RS, Rel. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, DJU 13.08.2003, p. 107)
Por fim, é de se fazer uma ressalva, relativamente à Emenda Constitucional 62/2009 que incluiu o parágrafo 16 ao artigo 100 da Constituição Federal:
§ 16. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisitórios, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios.
Esse dispositivo constitucional trata especificamente da forma de atualização dos débitos da Fazenda durante o trâmite dos precatórios. A princípio, aparenta trazer a mesma determinação do artigo 1º-F da Lei 9.494/97 (na redação da Lei 11.960/2009), contudo, não é exatamente assim.
Com efeito, o dispositivo constitucional acima traz regra diferente para a incidência dos índices da caderneta de poupança sobre os débitos da Fazenda: "a atualização de valores de requisitórios (...) será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança", e "para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança". Apesar da má redação, que faz parecer que a taxa de remuneração básica da poupança não seria taxa de juros, a norma deixa claro o que pretende: que a correção monetária seja estabelecida pela taxa de remuneração básica, atualmente a TR mensal, e que os juros moratórios sejam fixados pelo adicional de juros da poupança, de 0,5% ao mês ou de 70% da meta da taxa Selic anual mensalizada. Ou seja, o dispositivo constitucional determina a clara divisão entre as duas rubricas, correção monetária baseada na TR, juros moratórios de 0,5% ou de 70% da meta da taxa Selic anual mensalizada. Nesse caso, a preocupação com o anatocismo recai apenas sobre essa última, haja vista que, apesar de TR ser originalmente taxa de juros, a Constituição determina que ela seja considerada na hipótese específica como índice de correção monetária.
Portanto, a forma de aplicação dos índices da poupança segundo o artigo 1º-F da Lei 9.494/97 e conforme o artigo 100, § 16, da CF é diversa, o que deve ser considerado na liquidação dos valores devidos pela Fazenda.
Sendo esses os contornos atuais da celeuma acerca da aplicação dos índices da poupança para fins de correção monetária e de juros moratórios nas execuções contra a Fazenda Pública, com a exposição acima é possível perceber que as principais questões, necessárias a uma melhor compreensão do debate, passam por conhecimentos mais contábeis do que jurídicos. Contudo, os juristas não podem se furtar de conhecê-las, cabendo-lhes uma interpretação tópico-problemática e sistemática do ordenamento jurídico em face de tais questões, buscando, ao fim, solucionar um debate tão importante como esse, que atinge todas as execuções contra os entes públicos visando o pagamento de quantia certa.